Espaço de emoções sentidas? Memórias?Estados de alma?Desabafos?Palavras ditas e outras que ficaram por dizer?

Tributo a poetas? Pequenas homenagens?

Talvez tudo isso ou, apenas, exorcismo e catarse da alma?


Seja como for, "esta espécie de blog" não pretende ser nada, a não ser o reflexo do que SOU e SINTO!

sábado, 26 de janeiro de 2013

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Porque a vida não é só poesia e erotismo...



Juro que não vou esquecer...

Nunca vou esquecer o olhar da rapariga que espera o tratamento de radioterapia. Sentada numa das cadeiras de plástico, o homem que a acompanha (o pai?) coloca-lhe uma almofada na nuca para ela encostar a cabeça à parede e assim fica, magra, imóvel, calada, com os olhos a gritarem o que ninguém ouve. O homem tira o lenço do bolso, passa-lho devagarinho na cara e os seus olhos gritam também: na sala onde tanta gente aguarda lá fora, algumas vindas de longe, de terras do Alentejo quase na fronteira, desembarcam pessoas de maca, um senhor idoso de fato completo, botão do colarinho abotoado, sem gravata, a mesma nódoa sempre na manga (a nódoa grita) caminhando devagarinho para o balcão numa dignidade de príncipe. É pobre, vê-se que é pobre, não existe um único osso que não lhe fure a pele, entende-se o sofrimento nos traços impassíveis e não grita com os olhos porque não tem olhos já, tem no lugar deles a mesma pele esverdeada que os ossos furam, a mão esquelética consegue puxar da algibeira o cartãozinho onde lhe marcam as sessões. Mulheres com lenços a cobrirem a ausência de cabelo, outras de perucas patéticas que não ligam com as feições nem aderem ao crânio, lhes flutuam em torno. E a imensa solidão de todos eles. À entrada do corredor, no espaço entre duas portas, uma africana de óculos chora sem ruído, metendo os polegares por baixo das lentes a secar as pálpebras. Chora sem ruído e sem um músculo que estremeça sequer, apagando-se a si mesma com o verniz estalado das unhas. Um sujeito de pé com um saco de plástico. Um outro a arrastar uma das pernas. A chuva incessante contra as janelas enormes. Plantas em vasos. Revistas que as pessoas não lêem. E eu, cheio de vergonha de ser eu, a pensar faltam-me duas sessões, eles morrem e eu fico vivo, graças a Deus sofri de uma coisa sem importância, estou aqui para um tratamento preventivo, dizem-me que me curei, fico vivo, daqui a pouco tudo isto não passou de um pesadelo, uma irrealidade, fico vivo, dentro de mim estas pessoas a doerem-me tanto, fico vivo como, a rapariga de cabeça encostada à parede não vê ninguém, os outros (nós) somos transparentes para ela, toda no interior do seu tormento, o homem poisa-lhe os dedos e ela não sente os dedos, fico vivo de que maneira, como, mudei tanto nestes últimos meses, os meus companheiros dão-me vontade de ajoelhar, não os mereço da mesma forma que eles não merecem isto, que estúpido perguntar
- Porquê ?
que estúpido indignar-me, zango-me com Deus, comigo, com a vida que tive, como pude ser tão desatento, tão arrogante, tão parvo, como pude queixar-me, gostava de ter os joelhos enormes de modo que coubessem no meu colo em vez das cadeiras de plástico
(não são de plástico, outra coisa qualquer, mais confortável, que não tenho tempo agora de pensar no que é)
isto que escrevo sai de mim como um vómito, tão depressa que a esferográfica não acompanha, perco imensas palavras, frases inteiras, emoções que me fogem, isto que escrevo não chega aos calcanhares do senhor idoso de fato completo
(aos quadradinhos, já gasto, já bom para deitar fora)
botão de colarinho abotoado, sem gravata e no entanto a gravata está lá, a gravata está lá, o que interessa a nódoa da manga
(a nódoa grita)
o que interessa que caminhe devagar para o balcão mal podendo consigo, doem-me os dedos da força que faço para escrever, não existe um único osso que não lhe fure a pele, entende-se o sofrimento nos traços impassíveis e não grita com os olhos porque não tem olhos já, tem no lugar deles a mesma pele esverdeada que os ossos furam e me observa por instantes, diga
- António
senhor, por favor diga
- António
chamo-me António, não tem importância nenhuma mas chamo-me António e não posso fazer nada por si, não posso fazer nada por ninguém, chamo-me António e não lhe chego aos calcanhares, sou mais pobre que você, falta-me a sua força e coragem, pegue-me antes você ao colo e garanta-me que não morre, não pode morrer, no caso de você morrer eu
no caso de você e da rapariga da almofada morrerem vou ter vergonha de estar vivo.

António Lobo Antunes

Relacionamentos


Depois de muito meditar sobre o assunto concluí que os casamentos (relacionamentos) são de dois tipos: há os casamentos do tipo Tênis e há os casamentos do tipo Frescobol.
Os casamentos do tipo tênis são uma fonte de raiva e ressentimentos e terminam mal. Os casamentos do tipo Frescobol são uma fonte de alegria e têm a chance de ter vida longa. Explico-me.

Para começar, uma afirmação de Nietzche, com a qual concordo inteiramente. Dizia ele: "Ao pensar sobre a possibilidade do casamento, cada um deveria se fazer a seguinte pergunta:
"Você crê que seria capaz de conversar com prazer com esta pessoa até sua velhice?"
Tudo o mais no casamento é transitório, mas as relações que desafiam o tempo são aquelas construídas sobre a arte de conversar. Sherazade sabia disso. Sabia que os casamentos baseados nos prazeres da cama são sempre decapitados pela manhã, e terminam em separação, pois os prazeres do sexo se esgotam rapidamente, terminam na morte, como no filme O Império dos
Sentidos. Por isso, quando o sexo já estava morto na cama, e o amor não mais se podia dizer através dele, Sherazade o ressuscitava pela magia da palavra: começava uma longa conversa sem fim, que deveria durar mil e uma noites. O sultão se calava e escutava as suas palavras como se fossem música. A música dos sons ou da palavra - é a sexualidade sob a forma da
eternidade: é o amor que ressuscita sempre, depois de morrer. Há os carinhos que se fazem com o corpo e há os carinhos que se fazem com as palavras. E contrariamente ao que pensam os amantes inexperientes, fazer carinho com as palavras não é ficar repetindo o tempo todo: "Eu te amo".
Barthes advertia: "Passada a primeira confissão, eu te amo não quer dizer mais nada". É na conversa que o nosso verdadeiro corpo se mostra, não em sua nudez anatômica, mas em sua nudez poética. Recordo a sabedoria de Adélia Prado: "Erótica é a alma". 
Tênis é um jogo feroz. O objetivo é derrotar o adversário. E a sua derrota se revela no seu erro: O outro foi incapaz de devolver a bola. Joga-se tênis para fazer o outro errar. O bom jogador é aquele que tem a exata noção do ponto fraco do seu adversário, é justamente para aí que ele vai dirigir sua cortada. Palavra muito sugestiva - que indica o seu objetivo sádico, que é o de cortar, interromper, derrotar. O prazer do tênis se encontra, portanto, no momento em que o jogo não pode mais continuar porque o adversário foi colocado fora de jogo. Termina sempre com a alegria de um e a tristeza de outro.
Frescobol se parece muito com o tênis: dois jogadores, duas raquetes e uma bola. Só que, para o jogo ser bom, é preciso que nenhum dos dois perca. Se a bola veio meio torta, a gente sabe que não foi de propósito e faz o maior esforço do mundo para devolvê-la gostosa, no lugar certo, para que o outro possa pegá-la. Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado. Aqui ou os dois ganham ou ninguém ganha. E ninguém fica feliz quando o outro erra. O erro de um, no frescobol, é um acidente lamentável que não deveria ter acontecido. E o que errou pede desculpas, e o que provocou o erro se sente culpado. Mas não tem importância: começa-se de novo este delicioso jogo em que ninguém marca pontos...
A bola: são nossas fantasias, irrealidades, sonhos sob a forma de palavras. Conversar é ficar batendo sonho prá lá, sonho prá cá.... 
Mas há casais que jogam com os sonhos como se jogassem tênis. Ficam à espera do momento certo para a cortada. Tênis é assim: recebe-se o sonho do outro para destruí-lo, arrebentá-lo, como bolha de sabão.O que se busca é ter razão e o que se ganha é o distanciamento. Aqui, quem ganha sempre perde.
Já no frescobol é diferente: o sonho do outro é um brinquedo que deve ser preservado, pois se sabe que, se é sonho, é coisa delicada, do coração. 
O bom ouvinte é aquele que, ao falar, abre espaços para que as bolhas de sabão do outro voem livres ao vento. Bola vai, bola vem - cresce o amor... Ninguém ganha, para que os dois ganhem. E se deseja então que o outro viva sempre, eternamente, para que o jogo nunca tenha fim...

Rubem Alves

sábado, 19 de janeiro de 2013

Lembro-me...


Lembro-me do muro entre a estrada e a praia.
Sobre ele nos sentámos, como se para sempre pudéssemos
guardar a primeira fatia de sol, janeiro,
uma palavra aprendida de noite, ou uma ilha
que crescesse do mar e navegasse à deriva. Mais tarde
viriam as vespas e as gaivotas ao rumor dos meus dedos
nos teus cabelos - como anjos há muito aguardados.

De todos os momentos guardo este; e ainda um outro
em que os meus passos se ouviam já no asfalto,
mas os meus olhos permaneciam nesse lugar
onde apenas se repetem
as ondas, as algas, os avisos do vento.

Maria do Rosário Pedreira, "A Casa e o cheiro dos Livros" 


Sempre dois...




"(...) uma relação sensual, e tudo o que completa uma relação amorosa, se só tiver por horizonte um único ser, me parece institucional, e pó. "

M.G.Llansol, Contos do mal errante

Um Bom Pai!!!


Querido Pai,

Perguntaste-me recentemente por que razão eu afirmo que tenho medo de ti. Como é habitual, não sabia o que responder, em parte justamente por causa do medo que tenho de ti, em parte porque são tantos os pormenores que justificam esse medo que eu não seria capaz de os manter minimamente coesos ao falar. E se procuro responder-te agora por escrito, só o conseguirei fazer de forma muito incompleta, porque também na escrita o medo e as suas consequências me embaraçam face a ti e porque a importância do assunto ultrapassa largamente a minha memória e o meu entendimento. (…)
Também é verdade que praticamente nunca me bateste a sério. Mas a gritaria, a forma como a tua cara ficava vermelha, a pressa com que desprendias os suspensórios, o facto de estarem sempre à mão sobre o encosto da cadeira, quase era ainda pior. É como quando alguém sabe que vai ser enforcado. Se é mesmo enforcado, então morre e acabou-se tudo. Mas se o obrigam a assistir a todos os preparativos para o enforcamento e só toma conhecimento do perdão quando já tem a corda ao pescoço, então vai ficar a sofrer durante toda a vida. Ainda por cima, de todas as vezes que eu teria merecido pancada segundo a tua opinião claramente expressa e escapava à tangente graças à tua misericórdia, acumulava-se novamente um grande sentimento de culpa. Fizesse o que fizesse, acabava sempre por ter culpa.
Desde então acusavas-me ( a sós ou perante outras pessoas, já que eras insensível à humilhação que eu pudesse sentir e os assuntos relacionados com os teus filhos eram sempre públicos ) de que era à custa do teu trabalho que eu vivia sem que nada me faltasse, em paz, no conforto e na abundância. (…)

Franz Kafka, Carta ao Pai

Gemido



Oferecia o corpo com a mesma suavidade. As pernas esguias ou o ventre, tal como os seios e os ombros, tinham um contorno adolescente onde ela domava o vício, onde ela soltava, às vezes, o vício, com um torpor ou com uma liberdade total, uma necessidade extrema. E o gemido enchia a casa depois de sair mordido da sua boca.

Maria Teresa Horta, in Ambas as Mãos Sobre o Corpo 

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

domingo, 6 de janeiro de 2013

Espero...



                      espero sempre por ti o dia inteiro,
                      quando na praia sobe, de cinza e oiro,
                      o nevoeiro
                      e há em todas as coisas o agoiro
                      de uma fantástica vinda

                    Sophia de Mello Breyner

Loucura?



 Gostaria de poder ser aquela que desejo ser, do outro lado da rede da loucura. Faria ramos de flores todo o dia. Pintaria a dor, o amor e a ternura. Rir-me-ia muito da estupidez dos outros, e todos diriam: pobre louca. ( Riria muito sobretudo da minha própria estupidez. ) Construiria o meu mundo e, enquanto vivesse, ele estaria em harmonia com todos os outros mundos. O dia, a hora e o minuto que vivesse, ele estaria em harmonia com todos os outros mundos. O dia, a hora e o minuto que vivesse seriam ao mesmo tempo meus e de toda a gente. A minha loucura não seria então um meio de me refugiar no meu trabalho, para que os outros me mantenham prisioneira da sua obra. A revolução é a harmonia da forma e da cor, e tudo se transforma e permanece sob uma única lei: a vida. Ninguém se separa de ninguém. Ninguém luta por si só. Tudo é ao mesmo tempo tudo e um. A angústia, a dor e o prazer e a morte são apenas um único e mesmo meio de existir. “

In, Diário de Frida

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Amargo beijo


Acordo com o teu nome nos
meus lábios — amargo beijo

esse que o tempo dá sem
aviso a quem não esquece.


Maria do Rosário Pedreira

Partida







Quando alguém parte, tem de deitar
ao mar o chapéu com as conchas
apanhadas ao longo do Verão,
e ir-se com o cabelo ao vento,
tem de lançar ao mar
a mesa que pôs para o seu amor,
tem de deitar ao mar
o resto do vinho que ficou no copo,
tem de dar o seu pão aos peixes
e misturar no mar uma gota de sangue,
tem de espetar bem a faca nas ondas
e afundar o sapato
coração, âncora e cruz
e ir-se com o cabelo ao vento!
Depois, regressará.
Quando?
Não perguntes.

Ingeborg Bachmann