Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.
Houve um tempo em que minha janela se abria
sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada,
e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde,
e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Ás vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.
Pio Vargas seria o maior poeta de seu
tempo. Mas morreu antes dele. A carreira meteórica do autor de “Anatomia do
Gesto” e “Os Novelos do Acaso” foi interrompida tragicamente, aos 26 anos, por
uma overdose de cocaína, na tarde de 8 de março de 1991. Pio Vargas foi
apontado por Paulo Leminski como um dos mais criativos poetas de sua geração:
“Pio Vargas tem um ‘eu’ coletivo tão forte que chego a vê-lo muitos. De sua
poesia consigo extrair a certeza do que digo, insistente: há uma geração
recente que usa e abusa da modernidade, fazendo dela o principal elemento a
interferir na criação. Este Pio Vargas me trouxe uma poesia fascinante que não
se atrela a falsos modelos de invenção, mas flutua, inventiva, com os mais
amplos e possíveis signos do fazer poético”. in Revista Bula, Carlos Willian Leite
Gosto de pensar que o teu corpo nasce nas minhas mãos tão rapidamente como uma frase que escrevo, que o teu corpo vem ter comigo como as palavras rente ao muro da casa onde se inicia o dia. Mas o teu corpo não chega onde eu quero, nem onde tu queres, ele chega aonde cai. És a morada mais apetecida, as paredes mais quentes, com a sua pele lisa, os lilases à porta de casa, a janela por onde vejo o mundo e os pássaros a abandonarem as árvores ao fim da tarde. Os teus cabelos macios, da cor dos diospiros mais maduros, inundam de finas areias os olhos dos homens que não os podem tocar. Os homens que percorrem o caminho silvestre da alegria, esse teu corpo longo de harmonia, seja com mãos ou com lábios, não tardam a encontrar o rosto que ofereces ao vento e à luz. O teu rosto ilumina-se pela manhã. Os dias dançam na beirada dos teus doces e macios lábios. A tua boca é um abismo. Nenhum mortal sobrevive a tamanha queda, nem com os teus braços a ampararem. Braços que cortam o mar, braços peixe, que não temem a rebentação das nuvens, as trovoadas mais eléctricas que o desejo possa ter. A tua paixão é do tamanho da sede que nasce nos desertos. Tu és do tamanho de conseguir as coisas. Trazes palavras que destroem a tristeza, essa pedra que cresce dentro dos corações humanos. Trazes a alegria para dentro de casa. E, depois de arrumares a alegria toda nas prateleiras, nas gavetas, nos armários, a alegria toda nos sítios certos, sentas-te para mim. Sentas-te como quem viaja. Sentas-te para um infinito de paixão. Mas não esqueço os dias em que as minhas mãos rebentavam contra o teu peito, contra as tuas nádegas, como ondas de oceano, subindo pelas falésias e salpicando de sal húmido os lençóis da cama. Os meus dentes a tiritarem de frio nos teus mamilos, meu amor, frio de medo que se acabasse. Frio de medo que parasses, que não chegues.
Um dia talvez faça sentido a tua fuga urgente
e fria
pela calada do silêncio.
Só então perdoarei o tempo
pela dor de não te ter tido
nem ter sabido de cor.
Podias ter sido um barco
a navegar no mesmo ritmo das ondas,
mas não. Quiseste ser vento contrário...
Mas tudo tem duas faces.
A tristeza é só a outra face da alegria
tal como a morte é só a outra face da vida.
Este amor tem duas faces:nós...
e nós somos apenas tu e eu,
o desencontro na volta lenta da vida
o reencontro além do tempo.
Logo chegará o dia
em que o teu espaço será o meu espaço
e o teu tempo será o meu tempo
e jamais haverá sinais a apontar destinos
proibidos.
Seremos apenas nós,
com a certeza de um amor sobrevivente
na memória longínqua do olhar.
E será pelo olhar que nos reconheceremos...
Hoje eu sei que não vou morrer por não te ter,
porque um dia
atravessarei o portão desconhecido
e, ainda que tu não saibas,
levar-te-ei comigo...
e se não posso ter-te aqui,
ter-te-ei além
onde os barcos navegam sem vento...
Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que são absurdos - a ânsia de coisas impossíveis, precisamente porque são impossíveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido, a mágoa de não ser outro, a insatisfação da existência do mundo.
Todos estes meios-tons da consciência da alma criam em nós uma paisagem dolorida, um eterno sol-pôr do que somos.
(...) Nestas horas de mágoa subtil, torna-se-nos impossível, até em sonho, ser amante, ser herói, ser feliz. Tudo isso está vazio, até na ideia do que é. Tudo isso está dito em outra linguagem, para nós incompreensível, meros sons de sílabas sem forma no entendimento. A vida é oca, a alma é oca, o mundo é oco. Todos os deuses morrem de uma morte maior que a morte. Tudo está mais vazio que o vácuo. E tudo um caos de coisas nenhumas.
Se penso isto e olho, para ver se a realidade me mata a sede, vejo casas inexpressivas, caras inexpressivas, gestos inexpressivos. Pedras, corpos, ideias - está tudo morto. Todos os movimentos são paragens, a mesma paragem todos eles. Nada me diz nada. Nada me é conhecido, não porque o estranhe mas porque não sei o que é. Perdeu-se o mundo. E no fundo da minha alma - como única realidade deste momento - há uma mágoa intensa e invisível, uma tristeza como o som de quem chora num quarto escuro.
Eu estava sentada no regaço de uma mulher de cobre, uma escultura de Henry Moore, e Bill debruçou-se sobre mim e beijou-me nos lábios. E de repente eu amava-o. Amava-o e só isso importava. Reparei nas mãos dele, mãos de pianista. Mãos preparadas para o amor. Ainda hoje gosto de lhe ver as mãos enquanto folheia um livro, enquanto lê um jornal. As mãos dele envelheceram, envelheceram a apertar outras mãos, milhares de outras mãos, a jogar golfe, a assinar autógrafos e documentos importantes. Envelheceram, sim, mas continuam belas. Continuam a excitar-me.
O amor é uma renúncia. Amar alguém é desistir de amar outros, é desistir por esse amor do amor de outros. Eu desisti de tudo. A partir desse dia dei-lhe todos os meus dias. Entreguei-lhe os meus sonhos, os meus segredos, as minhas convicções mais profundas. Não me queixo!
Não sou ingénua nem estúpida. Quando digo que o amor é uma renúncia, quero dizer que foi assim para mim. Para Bill foi sempre uma outra coisa. Eu sabia que ele reparava noutras mulheres, e que outras mulheres reparavam nele. Um homem feio, com poder, é quase bonito. Um homem bonito, com poder, é quase um Deus.
Apesar da minha educação cristã, ou por causa dela, sempre me recusei a viver sujeita à ameaça do pecado. As grandes indústrias vêm tentando convencer-nos de que é possível tirar o veneno ao prazer e ficar apenas com o prazer: café sem cafeína, cerveja sem álcool, cigarro sem nicotina - amor platónico. Quanta estupidez. Quem bebe café procura a exaltação da cafeína. Quem pede uma cerveja numa tarde de sol quer refrescar o corpo, sim, mas também quer soltar o espírito. Se é para pecar quero o pecado inteiro.
Bill teve o seu castigo. Tivemos os dois. Foram dias difíceis, foram noites ainda mais difíceis, mas passaram. Uma manhã acordei e já não tinha lágrimas. Noutra manhã acordei e já não o odiava. Finalmente acordei e estava de novo abraçada a ele.
O amor é um hábito. Como acham que cheguei até este dia? Foi o amor que me trouxe. Maldito seja.
José Eduardo Agualusa, in 'A Educação Sentimental dos Pássaros '
Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão,
deixo o mar bravo e o céu tranquilo:
quero solidão.
Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces? - me perguntarão.
- Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.
Que procuras? Tudo. Que desejas? - Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.
A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?
Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!
Estandarte triste de uma estranha guerra...)
Quero solidão.
Nunca vou esquecer o olhar da rapariga que espera o tratamento de radioterapia. Sentada numa das cadeiras de plástico, o homem que a acompanha (o pai?) coloca-lhe uma almofada na nuca para ela encostar a cabeça à parede e assim fica, magra, imóvel, calada, com os olhos a gritarem o que ninguém ouve. O homem tira o lenço do bolso, passa-lho devagarinho na cara e os seus olhos gritam também: na sala onde tanta gente aguarda lá fora, algumas vindas de longe, de terras do Alentejo quase na fronteira, desembarcam pessoas de maca, um senhor idoso de fato completo, botão do colarinho abotoado, sem gravata, a mesma nódoa sempre na manga (a nódoa grita) caminhando devagarinho para o balcão numa dignidade de príncipe. É pobre, vê-se que é pobre, não existe um único osso que não lhe fure a pele, entende-se o sofrimento nos traços impassíveis e não grita com os olhos porque não tem olhos já, tem no lugar deles a mesma pele esverdeada que os ossos furam, a mão esquelética consegue puxar da algibeira o cartãozinho onde lhe marcam as sessões. Mulheres com lenços a cobrirem a ausência de cabelo, outras de perucas patéticas que não ligam com as feições nem aderem ao crânio, lhes flutuam em torno. E a imensa solidão de todos eles. À entrada do corredor, no espaço entre duas portas, uma africana de óculos chora sem ruído, metendo os polegares por baixo das lentes a secar as pálpebras. Chora sem ruído e sem um músculo que estremeça sequer, apagando-se a si mesma com o verniz estalado das unhas. Um sujeito de pé com um saco de plástico. Um outro a arrastar uma das pernas. A chuva incessante contra as janelas enormes. Plantas em vasos. Revistas que as pessoas não lêem. E eu, cheio de vergonha de ser eu, a pensar faltam-me duas sessões, eles morrem e eu fico vivo, graças a Deus sofri de uma coisa sem importância, estou aqui para um tratamento preventivo, dizem-me que me curei, fico vivo, daqui a pouco tudo isto não passou de um pesadelo, uma irrealidade, fico vivo, dentro de mim estas pessoas a doerem-me tanto, fico vivo como, a rapariga de cabeça encostada à parede não vê ninguém, os outros (nós) somos transparentes para ela, toda no interior do seu tormento, o homem poisa-lhe os dedos e ela não sente os dedos, fico vivo de que maneira, como, mudei tanto nestes últimos meses, os meus companheiros dão-me vontade de ajoelhar, não os mereço da mesma forma que eles não merecem isto, que estúpido perguntar
- Porquê ?
que estúpido indignar-me, zango-me com Deus, comigo, com a vida que tive, como pude ser tão desatento, tão arrogante, tão parvo, como pude queixar-me, gostava de ter os joelhos enormes de modo que coubessem no meu colo em vez das cadeiras de plástico
(não são de plástico, outra coisa qualquer, mais confortável, que não tenho tempo agora de pensar no que é)
isto que escrevo sai de mim como um vómito, tão depressa que a esferográfica não acompanha, perco imensas palavras, frases inteiras, emoções que me fogem, isto que escrevo não chega aos calcanhares do senhor idoso de fato completo
(aos quadradinhos, já gasto, já bom para deitar fora)
botão de colarinho abotoado, sem gravata e no entanto a gravata está lá, a gravata está lá, o que interessa a nódoa da manga
(a nódoa grita)
o que interessa que caminhe devagar para o balcão mal podendo consigo, doem-me os dedos da força que faço para escrever, não existe um único osso que não lhe fure a pele, entende-se o sofrimento nos traços impassíveis e não grita com os olhos porque não tem olhos já, tem no lugar deles a mesma pele esverdeada que os ossos furam e me observa por instantes, diga
- António
senhor, por favor diga
- António
chamo-me António, não tem importância nenhuma mas chamo-me António e não posso fazer nada por si, não posso fazer nada por ninguém, chamo-me António e não lhe chego aos calcanhares, sou mais pobre que você, falta-me a sua força e coragem, pegue-me antes você ao colo e garanta-me que não morre, não pode morrer, no caso de você morrer eu
no caso de você e da rapariga da almofada morrerem vou ter vergonha de estar vivo.
Depois de muito
meditar sobre o assunto concluí que os casamentos (relacionamentos) são de dois
tipos: há os casamentos do tipo Tênis e há os casamentos do tipo Frescobol.
Os casamentos do tipo tênis são
uma fonte de raiva e ressentimentos e terminam mal. Os casamentos do tipo
Frescobol são uma fonte de alegria e têm a chance de ter vida longa.
Explico-me.
Para começar, uma afirmação de Nietzche, com a qual concordo inteiramente.
Dizia ele: "Ao pensar sobre a possibilidade do casamento, cada um deveria
se fazer a seguinte pergunta:
"Você crê que seria capaz de conversar com prazer com esta pessoa até sua
velhice?"
Tudo o mais no casamento é transitório, mas as relações que desafiam o tempo
são aquelas construídas sobre a arte de conversar. Sherazade sabia disso. Sabia
que os casamentos baseados nos prazeres da cama são sempre decapitados pela
manhã, e terminam em separação, pois os prazeres do sexo se esgotam
rapidamente, terminam na morte, como no filme O Império dos
Sentidos. Por isso, quando o sexo já estava morto na cama, e o amor não mais se
podia dizer através dele, Sherazade o ressuscitava pela magia da palavra:
começava uma longa conversa sem fim, que deveria durar mil e uma noites. O
sultão se calava e escutava as suas palavras como se fossem música. A música
dos sons ou da palavra - é a sexualidade sob a forma da
eternidade: é o amor que ressuscita sempre, depois de morrer. Há os carinhos
que se fazem com o corpo e há os carinhos que se fazem com as palavras. E
contrariamente ao que pensam os amantes inexperientes, fazer carinho com as
palavras não é ficar repetindo o tempo todo: "Eu te amo".
Barthes advertia: "Passada a
primeira confissão, eu te amo não
quer dizer mais nada". É na conversa que o nosso verdadeiro corpo se
mostra, não em sua nudez anatômica, mas em sua nudez poética. Recordo a
sabedoria de Adélia Prado: "Erótica é a alma".
Tênis é um jogo feroz. O objetivo
é derrotar o adversário. E a sua derrota se revela no seu erro: O outro foi
incapaz de devolver a bola. Joga-se tênis para fazer o outro errar. O bom
jogador é aquele que tem a exata noção do ponto fraco do seu adversário, é
justamente para aí que ele vai dirigir sua cortada. Palavra muito sugestiva -
que indica o seu objetivo sádico, que é o de cortar, interromper, derrotar. O
prazer do tênis se encontra, portanto, no momento em que o jogo não pode mais
continuar porque o adversário foi colocado fora de jogo. Termina sempre com a
alegria de um e a tristeza de outro.
Frescobol se parece muito com o tênis: dois jogadores, duas raquetes e uma
bola. Só que, para o jogo ser bom, é preciso que nenhum dos dois perca. Se a
bola veio meio torta, a gente sabe que não foi de propósito e faz o maior
esforço do mundo para devolvê-la gostosa, no lugar certo, para que o outro
possa pegá-la. Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado.
Aqui ou os dois ganham ou ninguém ganha. E ninguém fica feliz quando o outro
erra. O erro de um, no frescobol, é um acidente lamentável que não deveria ter
acontecido. E o que errou pede desculpas, e o que provocou o erro se sente
culpado. Mas não tem importância: começa-se de novo este delicioso jogo em que
ninguém marca pontos...
A bola: são nossas fantasias,
irrealidades, sonhos sob a forma de palavras. Conversar é ficar batendo sonho
prá lá, sonho prá cá....
Mas há casais que jogam com os
sonhos como se jogassem tênis. Ficam à espera do momento certo para a cortada.
Tênis é assim: recebe-se o sonho do outro para destruí-lo, arrebentá-lo, como
bolha de sabão.O que se busca é ter razão e o que se ganha é o distanciamento. Aqui,
quem ganha sempre perde.
Já no frescobol é diferente: o sonho do outro é um brinquedo que deve ser
preservado, pois se sabe que, se é sonho, é coisa delicada, do coração.
O bom ouvinte é aquele que, ao
falar, abre espaços para que as bolhas de sabão do outro voem livres ao vento.
Bola vai, bola vem - cresce o amor... Ninguém ganha, para que os dois ganhem. E
se deseja então que o outro viva sempre, eternamente, para que o jogo nunca
tenha fim...
Perguntaste-me recentemente por que razão eu afirmo que tenho medo de ti. Como é habitual, não sabia o que responder, em parte justamente por causa do medo que tenho de ti, em parte porque são tantos os pormenores que justificam esse medo que eu não seria capaz de os manter minimamente coesos ao falar. E se procuro responder-te agora por escrito, só o conseguirei fazer de forma muito incompleta, porque também na escrita o medo e as suas consequências me embaraçam face a ti e porque a importância do assunto ultrapassa largamente a minha memória e o meu entendimento. (…)
Também é verdade que praticamente nunca me bateste a sério. Mas a gritaria, a forma como a tua cara ficava vermelha, a pressa com que desprendias os suspensórios, o facto de estarem sempre à mão sobre o encosto da cadeira, quase era ainda pior. É como quando alguém sabe que vai ser enforcado. Se é mesmo enforcado, então morre e acabou-se tudo. Mas se o obrigam a assistir a todos os preparativos para o enforcamento e só toma conhecimento do perdão quando já tem a corda ao pescoço, então vai ficar a sofrer durante toda a vida. Ainda por cima, de todas as vezes que eu teria merecido pancada segundo a tua opinião claramente expressa e escapava à tangente graças à tua misericórdia, acumulava-se novamente um grande sentimento de culpa. Fizesse o que fizesse, acabava sempre por ter culpa.
Desde então acusavas-me ( a sós ou perante outras pessoas, já que eras insensível à humilhação que eu pudesse sentir e os assuntos relacionados com os teus filhos eram sempre públicos ) de que era à custa do teu trabalho que eu vivia sem que nada me faltasse, em paz, no conforto e na abundância. (…)
Oferecia o corpo com a mesma suavidade. As pernas esguias ou o ventre, tal como os seios e os ombros, tinham um contorno adolescente onde ela domava o vício, onde ela soltava, às vezes, o vício, com um torpor ou com uma liberdade total, uma necessidade extrema. E o gemido enchia a casa depois de sair mordido da sua boca.
Maria Teresa Horta, in Ambas as Mãos Sobre o Corpo
Gostaria de poder ser aquela que desejo ser, do outro lado da rede da loucura. Faria ramos de flores todo o dia. Pintaria a dor, o amor e a ternura. Rir-me-ia muito da estupidez dos outros, e todos diriam: pobre louca. ( Riria muito sobretudo da minha própria estupidez. ) Construiria o meu mundo e, enquanto vivesse, ele estaria em harmonia com todos os outros mundos. O dia, a hora e o minuto que vivesse, ele estaria em harmonia com todos os outros mundos. O dia, a hora e o minuto que vivesse seriam ao mesmo tempo meus e de toda a gente. A minha loucura não seria então um meio de me refugiar no meu trabalho, para que os outros me mantenham prisioneira da sua obra. A revolução é a harmonia da forma e da cor, e tudo se transforma e permanece sob uma única lei: a vida. Ninguém se separa de ninguém. Ninguém luta por si só. Tudo é ao mesmo tempo tudo e um. A angústia, a dor e o prazer e a morte são apenas um único e mesmo meio de existir. “